O lencinho da Inês
O dia em que quase tive o meu primeiro beijo.
Naquela Primavera, quase que tive o meu primeiro beijo.
Estava no 5º ano. A minha mãe mandava-me ir, à tarde, depois da escola, para a casa da D. Emília, para estudar. Ou, como às vezes dizia, para ter explicações. A D. Emília era amiga da minha mãe, vizinha dali perto, e mãe da Inês.
Aquele passeio entre a escola e a casa da Inês era o meu melhor bocado. Detestava a escola, e detestava ter de estudar depois, mas o passeio – o passeio, era algo espiritual. Passava pela minha própria casa, sem entrar, e metia-me a pé pelas bermas de campos agrícolas, directo a casa dela. Passava por um ribeiro que borbulhava a fresco, sempre o som familiar do ribeiro, e pisava ervas de verde vivo de Março com as minhas botas à prova de água. Quando chegava à porta da casa da Inês, dava patadas com força no chão de cimento para largar nacos de terra das botas, e limpava com muita força as solas no tapete de plástico. O som da sola a raspar no tapete de plástico fazia-me arrepiar a espinha, mas eu fazia questão em mostrar que me esforçava por entrar limpo (eu tinha de ser o bom rapazinho que a minha mãe queria; pequeno embaixador, perfeita representação do que a minha mãe queria que as outras pessoas pensassem de mim).
Foi a Inês que me abriu a porta.
— Olá, Ricardo.
— Olá.
— Entra, a minha mãe está a chegar.
Fiz a rotina do costume. Fui para o meu lugar na mesa da sala da D. Emília, subi a cadeira, e levei para cima da mesa a minha mochila. Apertei os lados dos fechos de plástico, um de cada vez, para os destrancar. De dentro, veio o habitual cheiro forte a pão que a minha mãe me fazia para eu lanchar na escola mas que eu nunca comia (para não me passar por totó no ciclo, comprava antes uns Mars na cantina. Depois, com remorsos, custava-me deitar fora os pães da minha mãe, e por isso é que a minha mochila cheirava sempre tanto a pão e tanto a esquisito).
Alinhei em cima da toalha, à minha frente: o meu porta-lápis, a minha capa A4 com separadores (um por disciplina), e os manuais de inglês e francês. A especialidade da D. Emília era ajudar com línguas, sobretudo o francês.
Pronto.
Agora estava à espera (porque é que estava à espera?).
Senti a pressão do silêncio. O relógio de pêndulo parecia que fazia um estalido de língua, impaciente, uma vez por segundo (mais ou menos). De resto, só o som de roupa a mexer, se eu me mexesse. A Inês estava na cadeira dela, a olhar para as pontas dos seus dedos a tocarem-se. Eu tentava não me mexer.
— A minha mãe não está.
Tomei aquela declaração como licença para começar sem a D. Emília, para me ir adiantando nos deveres. Agora já havia som, o som de cadernos, folhas, páginas a virar, lápis e esferográficas a serem baralhadas no porta-lápis para escolher algo com que escrever. O mundo estava normal, outra vez. Folheei até à página da aula de hoje do caderno de francês, e comecei a olhar para os espaços do exercício que tinha de levar preenchidos para a próxima aula: Tu ______ (être) très jolie.
— Foi ao supermercado. Disse que vem já.
Escrevo, com o meu lápis mal afiado (não queria pedir agora à Inês se tinha um aguça, e nem sabia porquê), no caderno, muito de leve (para o caso de ser preciso apagar depois), est. A D. Emília haveria de gostar de ver os meus exercícios já feitos quando chegar, e se tivesse poucos erros até poderia ir mais cedo para casa.
Com as duas mãos, a Inês empurra, com as mãos sobre a toalha da mesa, para a minha direcção, um ovo de plástico amarelo.
— Toma. É para ti.
Era a bola amarela do interior dum ovo Kinder Surpresa. Para mim?, não pergunto. Abro. O som hermético, característico, das bolas amarelas dos ovos Kinder a abrir. Só que ali dentro, em vez dum brinde de plástico, um tecido. Tiro-o. É um lencinho, pequenino, um quadrado do tamanho duma base de copos. Estendo-o. É branco, de tecido muito fino, com um passarinho bordado. O passarinho é cor-de-rosa, e azul-bebé no bico e nas patas. Dito assim, pode parecer estranho, uma versão daltónica dum pintainho, mas hoje vejo, na memória que tenho dele, que era um passarinho muito querido.
Enquanto abria o ovo, estendia o lenço, e tentava perceber o passarinho, a Inês tinha vindo sentar-se na cadeira ao meu lado, à minha esquerda. Nem a vi chegar.
— Gostas?
De repente, o meu coração começou a bater muito forte. Queria sair dali. Não conseguia aguentar aquilo. Aquilo tudo. Tirei os olhos dela, com medo, e fixei-me no passarinho. Olhei para o lenço com tanta força que em vez dum passarinho, querido, via apenas linhas de costura. Via, de tanta força, que aquilo era apenas um objecto, que alguém costurou pontos num tecido, e que o tecido, ele próprio, havia sido feito numa fábrica qualquer, por alguém ou por uma máquina. Era um objecto físico do mundo material. Só isso.
Tinha conseguido evitar o meu primeiro enfarte cardíaco da minha vida.
E então ela aproxima-se ainda mais de mim. A cabeça dela começou a chegar-se perto da minha, e pareceu que sentia um campo eléctrico qualquer. Olhei para ela, a tentar perceber se o que ela estaria a pensar fazer era o que eu estava a pensar, mas isso só fez pior: as nossas caras ficaram de frente uma para a outra, perfeitamente alinhadas. Ela pára um bocadinho, para eu me habituar à proximidade, à ideia. O meu coração, ai, estava outra vez pior que o pêndulo irregular do relógio de sala, só que multiplicado por infinitos.
Eu queria implodir. Eu não queria aquilo. Eu não queria que a minha mãe soubesse do que estava a acontecer, e a minha mãe iria saber, porque de certeza absoluta que a Nossa Senhora de Fátima estaria a ver-me agora e lhe iria dizer depois, à noite, quando a minha mãe rezasse e falasse com ela.
A Inês retoma, hesita. Hesita. Eu era uma estátua morta, branca, fria.
Ouvi (com muita força) um carro. Sim, era o som do carro da D. Emília a chegar. O som dos pneus a trilhar brita, a minha salvação! Eu estava de costas para a janela da sala, mas é como se eu estivesse a ver o Peugeot branco da D. Emília a parar em frente da casa. O meu alívio.
— A tua mãe…
A Inês deixa cair os ombros e volta para o seu lugar, desconsolada. Eu pego no lencinho e nas duas metades amarelas do ovo de plástico, e atiro-as para dentro da mochila, para apagar dali os vestígios daquele pecado.
Passei o resto daquela hora a dar erros de francês e de inglês.
— Tu hoje estás desconcentrado, Ricardo. Passou-se alguma coisa na escola?
Eu tentava não pensar no que se tinha passado, para evitar que o meu pensamento fosse lido pela D. Emília. Com adultos, era preciso ter sempre cuidado com os pensamentos: eles poderiam ver; era preciso pensar noutras coisas, com muita força (sempre com muita força), na sua presença.
Quando cheguei a casa, disse à minha mãe que não queria mais explicações. Que eu me iria esforçar para estudar mais em casa. Que iria tirar boas notas, de certeza. Eu não precisava mais de explicações.
— Está tudo bem contigo? Aconteceu-te alguma coisa?
Parecia que todos os adultos conseguiam ler pensamentos. Eu tinha de ser melhor a pensar noutras coisas enquanto falava com adultos. Concentrei-me nos Thundercats.
— Está. Só que quero estudar no meu quarto. Não preciso da D. Emília. Já sou crescido, mãe.
Mas não era crescido.
Escondi o lencinho atrás do livros das minhas estantes, livros inocentes de criança, até pensar como me desfazer dele antes que a minha mãe o visse. Acabei por o deitar ao lixo, um dia, juntamente com uns pães cheios de bolor.
A D. Emília foi colocada noutra terra qualquer, logo em Setembro daquele ano; nunca mais vi a Inês. Já mal me lembro da cara dela, só do cabelo (era preto) e que andava a aprender violino (nunca a ouvi tocar).
Hoje, a casa da D. Emília e da Inês pertence a outra pessoa qualquer, que pôs uma antena parabólica da Meo no telhado. Os campos em redor da casa já não existem; a casa está agora no meio de duas urbanizações. E a terra da minha infância já não é uma aldeia, é quase uma cidade — cresceu.
Naquela Primavera, eu não desabrochei. Não cresci.
Fui semente que não germinou.
Naquela Primavera, eu não tive o meu primeiro beijo.