Ao chegar a JFK somos todos suspeitos

Ricardo Pinho
5 min readJul 20, 2015

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Parti do aeroporto que serve a minha cidade, o Aeroporto de Francisco Sá Carneiro. Aterro noutro aeroporto doutro político que morreu durante o seu mandato: John F. Kennedy.

Logo ao sair do avião encontro uma multidão em vez duma fila. A rampa que desce para o controlo de entradas é um corredor de tecto baixo com uma divisão ao centro: US Citizens, Canadians, Diplomats e Permanent Residents, para a parte da esquerda, e para a direita Visitors / Visiteurs.

A parte da direita não tem uma fila, no seu sentido estrito, mas o conteúdo humano de vários aviões a preenchê-la, da parede à divisão. O ar condicionado não é suficiente para compensar o calor que tantas pessoas tão juntas produz.

Demoro mais de noventa minutos na fila dos visitantes. À esquerda, vão passando alguns americanos que dizem, em voz alta, «wow, look at this. They’re not US citizens». Olham para a multidão não com apreensão de como os visitantes são tratados, mas com o alívio de não estarem na situação dos estrangeiros que se amontoam como gado para entrarem no seu país. Look at this, dizem, com orgulho da sua situação. Os seus olhares na minha direcção e dos outros turistas tiram-nos dignidade. Não somos visitantes; somos todos imigrantes ilegais.

Uns adolescentes ainda explicitam, «isn’t it great to be a US citizen?». Não são os EUA que têm um serviço horrendo para visitantes: o problema é só o resto do mundo não ser cidadão dos EUA.

— What’s the purpose of your visit to the United States?

— Tourism.

— Why are you staying here for four weeks?

— Because I can.

A resposta saiu-me automática. Só depois reparei que estranhei o why daquela pergunta. Era tarde demais, porque a resposta foi entendida como rude.

É que os Estados Unidos da América consideram que entrar no seu país é um privilégio. Este privilégio é algo que fica à discrição dos agentes fronteiriços.

Considerar que reúno as condições pessoais (estar de férias) e legais (ser um cidadão dum território parte do programa de entrada sem vistos) foi uma afronta.

— What are you going to do during those four weeks?

— Just visiting around.

— Where are you going to stay?

— Newark.

— Where?

— Newark, New Jersey.

— I know where, but let me make this clear for you: what kind of address is this, apartment, hotel…?

— Friend’s house.

— And they don’t mind you staying there for four weeks?

Outra reacção somática minha: as sobrancelhas carregam-se sozinhas.

— No.

Mas afinal é da conta dum agente da polícia o estado de espírito das minhas relações?

— And you’re going to stay here for these weeks why?

— It’s my holidays!

O resto da entrevista corre hostil, mas no fim levo o carimbo.

Tanta insistência nas quatro semanas, quando o programa de isenção de vistos entre o Portugal e os EUA nos permite estadia de três meses.

Existe um programa que se chama Visa Waiver Program entre os EUA e alguns países, donde se inclui Portugal. O nome do programa poderia indicar que para visitar os EUA esses cidadãos não precisam de visto. Acontece que para visitar os Estados Unidos sem visto é necessário:

  • Preencher um requerimento electrónico chamado Electronic System for Travel Authorization que inclui informação pessoal estendida, como os contactos pessoais, incluindo o endereço electrónico, número de documento de identificação nacional, morada de casa e morada do empregador.
  • Pagar por esse requerimento.
  • Passar por uma entrevista à entrada do país onde o agente decide, at his or her discretion, se o alien é elegible for entry.

Ou seja, o formulário electrónico juntamente com a entrevista à entrada é no seu conjunto um visto camuflado.

When traveling to the U.S. with the approved ESTA, you may only stay for up to 90 days at a time — and there should be a reasonable amount of time between visits so that the CBP Officer does not think you are trying to live here.

O aspecto discricionário estende-se ao que o agente possa pensar.

By adding these additional questions, won’t ESTA now be the equivalent of an electronic visa?

No. The requirements for a nonimmigrant visitor (B1/B2) visa are different under U.S. statute and more complex than the requirements for an ESTA. Applicants for a B1/B2 visa must in most cases undergo an interview with a United States Department of State consular officer, submit their biometric information in advance of travel, and provide additional biographic information not required under ESTA. These requirements do not exist for VWP travelers and will not exist with the addition of new ESTA questions. — fonte: dhs.gov

O momento em que os vistos B dos EUA registam os dados biométricos e fazem a entrevista são um mero pormenor cronológico, e os dados biográficos adicionais só podem ser mais intrusivos ainda — e isto apenas segundo a própria lei americana, pois outros países não têm pudor em chamar a isto um visto electrónico.

“A new type of visa has been invented.”
Elmar Brok, membro do parlamento europeu.

A sensação de tudo isto é estarmos perante um estado polícia e não um estado de direito.

E como o programa de vistos é feito em condições políticas de reciprocidade, como cidadão europeu torço para que todos países da União Europeia se sensibilizem para a assimetria do tratamento, e que requeiram aos cidadãos americanos que nos queiram visitar sem visto:

  • O preenchimento dum formulário electrónico de autorização, incluindo morada pessoal e do empregador, assim como o seu social security number.
  • Pagamento duma taxa.
  • Entrevista por parte dum agente de imigração sobre a natureza e intenção da sua visita, estando a aceitação sujeita à sua discrição.

Isto não serve como manobra vingativa, mas para estabelecer uma base de reciprocidade necessária na relação entre entidades políticas soberanas.

The EU aims at achieving full visa reciprocity with the non-EU countries whose nationals are exempt from the visa requirement. Thus, EU citizens would not need a visa either for travelling to these non-EU countries.

For that purpose, a visa reciprocity mechanism has been set up: if a country whose citizens are exempt from the visa requirement introduces a visa requirement for one or more EU States, the EU State(s) concerned notifies the Commission. The Commission then takes steps with the authorities of that country to restore visa-free travel. It can also propose retaliatory measures vis-à-vis the country in question.

É que nem todos os estados-membro da União Europeia gozam do programa Visa Waiver.

The European Union has been pressuring the United States to extend the Visa Waiver Program to its five remaining member countries that are not currently in it: Poland, Romania, Bulgaria, Cyprus and Croatia.

Nós, cidadãos portugueses e outros estados-membro que dele beneficiamos abdicarmos do programa enquanto os restantes não o tiverem é mostrarmos solidariedade e União.

Tinha escolhido os Estados Unidos da América para passar tempo de lazer, desfrutar da gastronomia e cultura, e fazer compras.

O meu primeiro momento de contacto é o da minha escolha não ser uma honra para os EUA, mas o contrário.

— It’s my holidays!, e já estava arrependido de ter vindo.

À entrada não sou um visitante, mas um suspeito.

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